Pé de moleque, cachimbo de ouro

- ooooô pé grande! Bora! Vai começa!

Os dois moleques subiram na bicicleta e partiram pra ver o jogo. Era jogo de futebol, chamado Partida do Embrenhão, onde os times locais competiam entre si e quase todo o pataco da arrecadação era transferido pra comunidade. Digo quase todo porque, como todo favelado tem seu mercenário ordinário, era necessário transferir também boa parte pra comprar a permissão de poder jogar. O menino é bom, vira serpente jogando, se enrola com a boca e deslancha ela direto no meio do gol sem nem chance pro bolador... E mesmo assim, menino tem que ter patrocinador. Isso é bom, porque coloca o menino Pé Grande dentro das melhores pré-seleçoes... Mas só na pré, porque o depois, o efetivo, precisa ter grana e precisa comprar esse direito de jogar bola que na verdade já nasceu com ele e ser reconhecido.

- quenhé que vai ser famoso? Famoso real, Jão, fazer festa cas estrela das novela...

- vai nada, moleque! Bora acelera essa caceta! Nois vai perde o jogo

O estádio era festa. Era semi-final. Os Batuqueiros contra os Jorge-Dragão.

Seu Jorge eu sou seu cavaleirooo! - uivava a torcida. Todo mundo colorido. Dos dois lados.

Cabia gente em todo o canto, tinha pessoal que ficava até em frente aos banheiros!

Passava o capixaba Genório com seu carrinho de pipoca doce. Pipoca doce, salgadinho Torcida, Caçulinha... tudo do mais baratinho pro povo comer e beber à vontade sem precisar sacrificar o almoço ou a janta das crianças no resto da semana ou do mês. Ele também vendia, à parte, só pra quem conhecia, aquelas cobrinhas de plástico, chup-chup de melado com cachaça... mas esse era só pra quem conhecia! E os bacana policial não podia ficar sabendo. Um dos acordos pra poder ter jogo à noite, de dia de semana, era não vender bebida dentro do estádio!

Estádio de comunidade é assim: arquibancada bem pintada. Nome de time, holofote. Em volta tem carro de som, tem uma galera que fica pirando... mas só em volta! Dentro tem criança, tem respeito. É dia de festa. Festa pra poder voltar pra semana (era quarta-feira) renovado. Poder ver os resultados dos times e pensar "logo logo meu neto vai tá lá, Maria!".

Se de bom humor vive, costuma viver mais e trabalhar mais alegre pra no final do ano o patrão trocar de carro. Mas que importa? Os sonhos nesses dias costumavam ser maiores do que os problemas da semana.

A bola que Zé Carlo errava pra dar o passe, virava peripécia no final de semana. Do lado do bate-bola, a praça, que as crianças ficavam imitando a semana inteira o que os grande haviam feito...

Essa era a mágica.

Os dois moleques chegaram jogando as bike pro lado. Tavam correndo tanto que os pés quase viravam cambota e batiam na bunda. Entre a rua, os pirado da noite, tinha uma barraquinha que o pai do Pé Grande deixava o menino pegar refrigerante (sem miséria, moleque! mas do sem marca!). Dava 5 metros já tava dentro do estádio, era só pular a mureta vermelha recém-pintada que já caía na arquibancada. Os ingressos nunca foram cobrados, pelo menos até então, porque a comunidade sabia como era importante ter aquilo ali - aquilo de cultura pro moleque, zé! leva os primo dele também! já avisei a mãe Cinira!

O movimento cultural do Embrenhão se estendia também pra ensinar capoeira, cheia de axé, pra todas as idades. Nada de muito enfeite nas roupas. O contra-mestre vivia dando bronca no aprendiz que, embora tivesse inteligência e remelexo, tinha também muita arrogância e queria ele mesmo escolher quem entrava no movimento - aí o moleque não vai querer voltar! precisa disso, precisa daquilo... o pai até compra. mas aí cobra. cobra o menino toda semana, todo dia, cobra nota na escola pro menino ir bem aqui... e às vezes não é o caminho do pivete. aí quer ir embora e não pode, vem aqui e faz bagunça... o final nem preciso dizer, né? o menino aprende golpe e os caçamba todo. quando faz mais idade sai no mundo e usa tudo pro mal... isso não pode... - deu um murro sem luva no saco de pancadas no canto do salão... - é pra levar pros menino vir com o que tem que aqui a gente vê e arranja função pra cada um. entendeu? não é pra vender!

Entre todos esses episódios, muitos do que tavam ali trabalhando possuíam forte senso de moral, ética e justiça. Era a comunidade dentro da cidade, fazia parte da cidade, tinha seu nome no CEP, mas não tinha nem segurança dos fundamenos básicos como água e luz e nem visibilidade como os outros cantos do município. O que ocasionou esse nascimento tardio e estrelar de figuras que levavam a favela nas costas. Algumas delas compareciam ao jogos, como o treinador do time do Jorge-Dragão.

Mas o costume mesmo era ficar um tanto quanto inalcançável, se não todo mundo pedia tudo ao mesmo tempo e o caminhar da carruagem da comunidade saía do trilho. Se satisfaz o bem de um, o bem-estar geral, o Orixá coletivo, fica com fome.

Os olhos do menino Pé Grande brilhava quando ele olhava pro treinador do Jorge-Dragão. O amigo tinha 6 anos e ele, 7. Era primo de Augusto dos Anjos, filho de mãe Cinira, que morava na comunidade que dava uns 20 minutos dali. Ele aprendeu com o primo sobre a calma da vida... sobre as águas que correm pelos olhos quando nossos sonhos ficam muito distantes. Por mais que ele tentasse, em algumas semanas (comumente as do final do mês, onde já não tinha tanta comida em casa e ele já ficava, com essa idade, preocupado, querendo ajudar a mãe) ele se sentia cansado. Os ombrinhos começavam a andar pra baixo... nem conseguia pegar a bola, chutava as pedrinhas do chão enquanto ia pra escola, rindo com o amigo. Ele ria por fora e ria por dentro também. Mas tem alegria que não é forte o suficiente pra quando bate tristeza de ver a realidade como é. O mundo, o mundo dos grandes, não era pra ele. Às vezes ele percebia isso. Quando percebeu a primeira vez, saiu andando que nem doido. Encontrou seu primo voltando da praia e foram tomar água de côco. Descobriu que ele estava passando por sentimentos parecidos. Mas o primo tinha 13, ele tinha 5. Decidiu, como um menino racional e organizado que era, deixar pra pensar nisso mais tarde, quando tivesse mais velho.

- foi GOOOOOOOOOOL! - a torcida uivava. Não dava nem pra entender o que era dito, era canto, cantiga, agradecimento, louvor... tudo junto e ao mesmo tempo.

Pé Grande perdeu até o fio dos pensamentos! Viu todo mundo comemorando. O amigo pegava ele pelos ombros e pulava, o sorriso mais lindo que se pode imaginar.

- gol! gol! GOL! FOI GOL PÉ!!! - E Pé balançava os ombros na alegria do amigo. Riu.

Pé virou um refri caçulinha. O açúcar no sangue e a nostalgia da torcida deram um gás no moleque, que ele começou a pular entre as arquibancadas. O pessoal sentado - ô moleque!!! Pé foi correndo, passando de um pro outro, correndo no meio do pessoal. Viu de tudo ali: adolescente com vape (aquele negócio da fumaça fedida que achavam que era cheirosa), que fica menino abraçando menina e não soltava e... credo! - PÉ! ALI! - e o amigo apontou pra arquibancada da frente, onde tava a mãe dele e a tia Cinira, rindo, parecendo mais que tavam em festejo do que em futebol. Porque a realidade é assim: tem uma proposta da vida, mas no meio do caminho tudo pode mudar e cada um faz o que bem entende de si.

A mãe abriu os braços gordos e deu um abraço no moleque. Era seu mais novo. Ele sentiu o cheiro de janta e ainda também um pouco da blusa molhada no meio dos peitos, de lavar roupa. Ele se sentiu em casa. A mãe acariciou a careca do menino. Mostrou ele pra tia e pro tio, que sorriram. Menino ficou sem graça. A mãe fez sinal pra ele ir brincar - quero ninguém rolando pra dormir hoje! - ele olhou pros tios e ia se despedir. Mãe Cinira, nesse momento, enfiou a mão na bolsa e chamou o menino de canto. Ele achou que fosse dinheiro, moeda gorda. Ela cochichou - coloca no bolso, filho - e piscou. O menino não viu o que era, só percebeu que era um cordão, uma espécie de colar.

- bora Pé! Tem que dar a volta!

- quem terminar primeiro ganha!

O menino pé olhou pra família e saiu correndo. Já de primeira deu o primeiro tropeço, caindo com as duas mãos no chão. Quando a mão segurou o chão pra não esfolar o rosto, ele viu o que tia Cinira colocou na sua mão: um colar preto e vermelho. Ele enfiou no pescoço - colar é de pescoço ué, num é de borso... e continuo a corredeira.

Em alguns momentos tensos da humanidade, quando duas oposições se encontram, se tornou natural que uma delas se imponha de força agressiva e imprescindível.

O time dOs Batuqueiros, entre trancos e barrancos, tinha conseguido firmar seus jogadores. Era um time feito de molecada de rua que caiu no vício das drogas. Era difícil treinar os menino, porque eles vira e mexe saíam da linha. Pra chegarem na semi-final como haviam chegado, foi um trabalho árduo do treinador do outro time. Rômulo, forte e firte, não deixava passar um dia sem falar com todos os meninos do grupo. Chamava todos pra sua casa, às vezes não tinha comida mas tinha o videogame que os meninos gostavam. Colocou todos em programas contra vício, fazia troca com os professores que conhecia pela vida pra eles irem falar sobre Filosofia e História com os meninos. Era funileiro, então arrumava carro em troca de Educação.

Acontece que, se bem sabe quem já passou por isso - quem nunca fez conta grande em boteco e deixou ir aumentando porque sabia que podia? - tudo que se faz, retorna. Não precisa de religião ou grandes entendimentos pra compreender isso. É só ver o quanto a avó ou o pai sofreu antes de passar desse mundo.

- Pé... tá acontecendo alguma coisa ali... - o amigo-pivete parou. Tentou parar Pé esticando o braço, mas Pé tava em mergulhado em imaginação. Achou que tivesse jogando com os Jorge-Dragão, que era o mais novo dos meninos, que era artilheiro do campeonato.

Houve um tiro.

A multidão começou a correr pra todos os lados.

Houve outro tiro.

E houve gritos incessantes, principalmente de mulheres.

O burburinho estava no outro canto do estádio, próximo ao banheiro. Alguém veio cobrar um dos meninos dOs Batuques que estava devendo e viu ali uma oportunidade de fazer dinheiro. Ficou próximo ao banheiro, que era onde o pessoal usava a droga do pó branco.

Acontece que tinha policial à paisana. Viu neguinho entrar e sair do banheiro com olho estalado, começou a fuxicar. Percebeu e colocou a mão na arma, tentando descobrir quem era que tava vendendo. Mas o traficante era covarde, tinha deixado menino novo pra cuidar da boca temporária e ido embora.

Menino novo assustou quando reconheceu o policial. Tentou chamar os moleque que fica pirando lá fora, pra ver se o Partido comprava a dele, mas de tão errado estava o raciocínio chapado quanto sua percepção de mundo.

Policial chamou o menino pra conversar. Tudo isso acontecendo embaixo da casinha dos banheiros, paredes brancas rachadas, o bebedouro desligado pra forçar o pessoal a comprar água.

No susto, o menino se viu preso. Empurrou o policial que, sem astúcia e regido pelo poder da arma de fogo, sacou e atirou pro alto pra conter.

Conteve bem direto no peito de Pé.

Que caiu.

Morto.

O amigo-pivete, um mirim preto de piche, chegou perto de Pé. - ô Pé... tentei avisar, mas tava na hora mesmo... vem, vamos. eu sei onde te levar.

E a guia escura ficou lá, manchada de sangue de injustiça. O menino não foi enterrado com ela porque mãe Cinira deu conta de enterrar antes.

Mas imagine um menino lindo, que pensava rápido pra cacete e corria que nem o vento, agora morreu sentindo o cheiro grosso do próprio peito que escorria pelo peito, pela barriga, pelo pescoço... ensopando suas costas.

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Psicóloga Juliana Lobo
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