"O Lado de Dentro": A primeira curta-metragem da ZAORCH dá um rosto à dor

Afonso MaiaAfonso Maia
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Estreia intimista no Parque da Paz, em Almada, propõe uma reconciliação com o que sentimos — e silenciamos.

Com 4 minutos e 35 segundos, a curta-metragem “O Lado de Dentro”, da ZAORCH, é um exercício de coragem, silêncio e enfrentamento emocional. Lançado no YouTube a 15 de junho, o filme foi gravado no Parque da Paz, em Almada, e soma milhares de visualizações desde a estreia. A estética minimalista contrasta com a profundidade do tema: a dor que carregamos — e da qual fugimos.

Interpretado por Emily Silva, com roteiro, direção e concepção de Domenique Heidy, fundadora da ZAORCH, e com apoio de produção executiva de Pedro de Carvalho, o projeto coloca em foco uma jovem que decide parar. Parar de fugir. Não do mundo, mas de si mesma.


O enredo silencioso que ecoa fundo

Logo na abertura, o cartaz pergunta: “E se a dor tiver um rosto?”. Mas a curta não responde. Observa, acompanha, espera. Sem palavras. O que se vê é uma jovem a correr por entre árvores, hesitante, confusa, até que pára. E começa o confronto com algo que não é visível, mas que nos é, de algum modo, familiar.

“A maior parte de nós aprendeu a fugir da dor como se fosse um inimigo. Mas o que tentámos mostrar aqui é que, muitas vezes, ela não está contra nós… está dentro de nós, a pedir escuta.” — Domenique Heidy


A interpretação: presença, respiração e escuta

A intérprete Emily Silva, que dá vida à personagem sem nome, conta que o desafio não esteve apenas na ausência de falas, mas na exigência de verdade interior:

“Foi muito mais difícil do que eu pensava. Porque não se tratava de representar para fora. Era preciso sentir… e deixar que isso saísse sem forçar. Como a diretora dizia: ‘não encena, escuta o que o teu corpo quer dizer’. Esperar a câmara, controlar a respiração, pensar com o corpo… Foram muitos detalhes que nunca tinha feito. Foi uma experiência incrível.”


“A personagem nasceu durante a gravação”

Domenique Heidy partilhou como conduziu a direção da curta — não com ensaios tradicionais, mas com uma abordagem viva e intuitiva, em que a emoção guiava o gesto:

“A Emily é brilhante. O que lhe pedi foi verdade. Que cada gesto tivesse um motivo, uma escuta interior. Disse-lhe: ‘escuta-te como se estivesses mesmo a fugir de algo que já foste’. Ela entendeu logo. Não tivemos ensaios. As gravações aconteceram enquanto eu narrava, em tempo real, o que a personagem devia estar a sentir. E aconteceu… Foi na gravação que a personagem nasceu de verdade.”


Transformar o íntimo em imagem

Questionada sobre como foi traduzir algo tão pessoal em linguagem visual, Domenique foi direta:

“Sinceramente, não foi difícil. Mas desde o início sabia que não queria fazer uma curta-metragem ‘poética e bonita’. Queria algo que tocasse. Que tivesse verdade. A dor é real. A reconciliação também. E eu quis mostrar que existe beleza, sim — mas não por fora… por dentro.”


Um apoio que acreditou desde o início

Pedro de Carvalho, responsável pelo apoio de produção executiva, revela o impacto que o guião lhe causou ainda antes da filmagem:

“Percebi que esta curta não era para entreter. Era para parar o espectador. Nem que fosse por alguns minutos. Há um apelo à escuta que já não é comum. E a Domenique tem essa coragem de dizer o que ninguém quer ouvir… mas que toda a gente precisa.”

Sobre os bastidores, Pedro destacou o profissionalismo da equipa mesmo com meios limitados:

“Tínhamos sol, vento, e árvores. E um guião forte. Às vezes, é tudo o que precisas quando tens uma ideia clara e uma realizadora com visão.”


A dor que nos habita

O filme é acompanhado por frases poderosas, como a que encerra o vídeo:

“A dor que tentamos fugir é a mesma que nos habita, até que a enfrentamos e a integramos.” — ZAORCH

Em poucos minutos, o espectador é confrontado com a própria vulnerabilidade. As cenas, filmadas entre árvores e silêncio, são um espelho desconfortável — mas necessário.

“Este curta não é sobre eliminar a dor. É sobre compreendê-la. Sobre saber porque ela ainda nos chama de casa.” — Domenique Heidy


Um filme sobre o instante em que escutamos

A descrição oficial resume o propósito:

“Este curta é sobre coragem. Sobre o instante em que deixamos de ignorar a ferida e passamos a escutá-la — com tempo, com respeito, com presença.”


Reações do público

Em menos de 24 horas, a curta ultrapassou 6800 visualizações e obteve mais de 2,2 mil gostos no YouTube. A caixa de comentários é um testemunho de como o filme tocou em lugares profundos do público.

A audiência não se limitou a Portugal: mensagens de outros países começaram a chegar à página oficial da ZAORCH no YouTube.

Um comentário de uma espectadora brasileira resume o efeito do filme:

“Senti que o vídeo olhava para mim. Não sei explicar… mas vi ali a dor que nunca consegui nomear.”


Considerações finais

A estreia de “O Lado de Dentro” marca um novo passo da ZAORCH no universo audiovisual. Conhecida pelas suas iniciativas sociais e performativas, a organização apresenta aqui uma peça de cinema intimista que convida à reconciliação com a própria humanidade.

“Todos nós temos partes que deixámos para trás. E às vezes é isso que nos persegue.” — Domenique Heidy

Com essa curta, a ZAORCH não tenta dar respostas — mas oferece uma lente interior. E talvez seja isso que mais nos falta: um lugar seguro onde possamos, enfim, parar… e olhar para dentro.


Texto por Afonso Maia
Jornalista cultural. Observa o que nasce entre a arte, o silêncio e o tempo.

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Afonso Maia
Afonso Maia

Jornalista com foco em cultura contemporânea, cinema autoral e expressões artísticas transformadoras. Assina crónicas e reportagens que cruzam arte e sociedade.